Revista A Lógica do Direito = ISSN 2238-1937

TRANSAÇÃO PENAL E SUA CONSTITUCIONALIDADE FACE AOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS

24-03-2013 10:46


Professor Orientador Anderson Ramires Pestana


Flávia Maciel Milleri


RESUMO
O presente artigo tem por escopo argumentar acerca do instituto da transação penal previsto na Constituição Federal de 1988 e instituído pela Lei 9.009/95, que versa sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais. Nesse ínterim, o trabalho apresentado faz jus à discussão sobre a constitucionalização, ou não, da aplicação da transação penal na esfera jurídica brasileira, em razão da real aplicabilidade dos Direitos Humanos, principalmente aos direitos fundamentais assegurados constitucionalmente.


INTRODUÇÃO
As inter-relações pessoais, consequências da vida em sociedade, culminam na formulação de regras de conduta que disciplinem a interação entre as pessoas, com o objetivo de alcançar o bem comum, a paz e a organização social. O Direito surge nesse supedâneo com suas normas jurídicas a fim alcançar essa comunhão social. Essa ciência jurídica, que não é estática, cria a todo momento novas normas, leis e tratados com o intuito de adequar a sociedade à realidade de sua época.
Em atenção a tal processo de adequação, por muito tempo o jurista brasileiro preocupa-se com um processo penal de melhor qualidade, propondo alterações ao antigo Código de 1940, com o intuito de alcançar um processo de resultados que disponha de instrumentos adequados à tutela de todos os direitos, com o objetivo de assegurar a utilidade das decisões. Há muito se tem sentido a necessidade de uma reforma das leis processuais com o fim de atualizar aqueles pontos em que a legislação se tornou disfuncional e ultrapassada, especialmente no que tange ao inadiável estabelecimento de ritos sumaríssimos para a apuração de contravenções e de crimes de menor gravidade, submetidos a um processo arcaico, formalista e burocratizante que tem levado não só os estudiosos e aplicadores do Direito, mas também os leigos a um sentimento de descrédito sobre a administração da Justiça penal.
As falhas da organização judiciária, a deficiência na formação dos juízes e advogados, a precariedade doa condições de trabalho, o uso arraigado de métodos obsoletos e irracionais e o escasso aproveitamento de recursos tecnológicos levaram a uma sensação generalizada de que profundas modificações nas órbitas social, política e econômica exigiam providências emergenciais a fim de evitar uma crise institucional ou judicial, ou seja, uma “crise no Judiciário”. Severas eram as críticas contra a lentidão do Judiciário e a impunidade de infratores que obtinham a extinção da punibilidade em decorrência da moralidade dos processos.
Na intenção de moldar a realidade à esfera jurídica, percebeu-se que a solução das controvérsias penais em certas infrações, principalmente quando de pequena monta, poderia ser atingida por um método consensual mais prático.  
Começou-se a considerar assim as vantagens do procedimento oral, quando praticado em sua verdadeira essência: a concentração, a imediação, a identidade física do juiz conduziriam à melhor apreciação das provas. Percebeu-se também que a celeridade acompanhada da oralidade, leva à desburocratização e simplificação da Justiça.
Em suma, inseria-se nas poderosas tendências rumo à deformalização do processo – tornando-o mais simples, mais rápido, mais eficiente, mais democrático, mais próximo da sociedade – e à deformalização das controvérsias, tratando-as, sempre que possível, pelos meios alternativos que permitem evitar ou encurtar o processo como a conciliação.
Essa tentativa de desburocratização e o freqüente abarrotamento de ações nos fóruns do Brasil declinaram na criação dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais (Lei 9.099 de 26 de setembro de 1995). Nessa esfera de Juizados Especiais, principalmente no que tange à área criminal, cabe especialmente ressaltar, dentre as acolhidas inovações, àquela sobre a incidência da transação penal, ou seja, sua constitucionalidade e vigência face aos direitos humanos fundamentais consagrados pala Magna Carta, foco do presente estudo.
 

1. DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
Constitucionalmente os direitos fundamentais estão delimitados, sobretudo, no art. 5°, tratando-se de um rol meramente exemplificativo, na medida em que não se excluem outros direitos e garantias expressos na Carta, nem aqueles decorrentes dos princípios básicos e do regime democrático, bem como os que surjam de tratados internacionais dos quais o Brasil seja signatário.
A CF, no seu art. 5°, caput, estipula os direitos fundamentais mínimos do homem, concernentes à inviolabilidade da vida, da liberdade, da igualdade, da presunção de inocência, do devido processo legal, do contraditório e ampla defesa, e que são inerentes ao ser humano. Esse mínimo existencial compreende aquilo que se denomina, em doutrina, piso vital.

1.1 Princípio do Devido Processo Legal, Ampla Defesa e Contraditório (art. 5°, inc. LIV e LV)
Os princípios gerais do direito processual são preceitos fundamentais que dão forma e caráter aos sistemas processuais. Alguns desses princípios são comuns a todos os sistemas, enquanto outros vigem somente em determinados ordenamentos.
O artigo 5º inciso LIV prevê o princípio do devido processo legal, no mesmo artigo, inciso LV é assegurado o contraditório e o da ampla defesa, todos na Constituição Federal de 1988. Ressalva se faz ao devido processo legal que também foi lembrado na Declaração Universal dos Direitos do Homem, em seu artigo XI, nº 1, o qual aduz que: “Todo homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa”.
Segundo Ada Pellegrini (2005) o princípio da ampla defesa e do contraditório são as bases do devido processo  legal. A ampla defesa  consiste em assegurar que o réu tenha condições de trazer para o processo  todos os elementos tendentes a esclarecer a verdade. Já o contraditório é a própria exteriorização da ampla defesa. A todo ato produzido pela acusação caberá igual direito de oposição por parte do réu, bem como de trazer a versão que melhor lhe apresente ou fornecer uma interpretação jurídica diversa daquela feita pelo autor.

2. A TRANSAÇÃO PENAL E SUA CONSTITUCIONALIDADE
Com a preocupação de evitar a impunidade nos ilícitos menores, o legislador constituinte inseriu na Constituição Federal o disposto no art. 98, inciso I, estabelecendo que a União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados deveriam criar “juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau”.
Mirabete afirma que com essa disposição, obrigando à criação doa juizados Especiais, a Carta Constitucional deu margem a importantes inovações em nosso ordenamento jurídico já utilizados em vários países, como os Estados Unidos e Itália, destinados à desburocratização e simplificação da Justiça Penal. Deus-se resposta à imperiosa necessidade de o sistema processual penal brasileiro abrir-se às posições e tendências contemporâneas, possibilitando-se uma solução rápida para a lide penal, quer pelo consenso das partes, com a pronta reparação dos danos sofridos pela vítima na composição, quer pela transação, com a aplicação de penas não privativas de liberdade, quer por um procedimento célere para apuração da responsabilidade penal dos autores de infrações penais de menos gravidade na hipótese de não se lograr ou não ser possível uma ou outra daquelas medidas inovadoras.
A Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais (Lei n° 9.099/95) tem sido acolhida por alguns com entusiasmo e com reservas por outros. Juridicamente não têm sido raras as opiniões no sentido de sua inconstitucionalidade.
No que tange à esfera penal, as maiores críticas tem sido dirigidas ao instituto da transação penal. “A transação, consiste em concessões mútuas entre as partes e os partícipes, foi expressamente autorizada pela Constituição Federal para as infrações de menor potencial ofensivo (art. 98, I).” (Pellegrini, 2005, P.68)
As críticas versam sobre três aspectos. Inicialmente considera-se que a aplicação da pena sem processo e sem reconhecimento de culpa infringiria o inc. LIV do art. 5° da Constituição, que estabelece que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”; Em segundo plano o instituto infringiria a presunção de inocência do art. 5°, inc. LVII, da Constituição; O terceiro argumento entende que ficaria desrespeitado o princípio da igualdade processual, decorrente do art. 5°, caput e inc. I, porquanto a transação penal só seria admissível se houvesse transação civil, com o que os que não pudessem ou não quisessem compor os danos ficariam excluídos do benefício do acordo penal.
Observa-se, em primeiro lugar, que a própria Constituição possibilita expressamente a transação penal para as infrações de menor potencial ofensivo (art. 98, inc. I, CF), deixando o legislador federal livre para impor-lhe parâmetros. Parâmetros esses que devem ser razoáveis, dentro do princípio da reserva legal proporcional.
Importante se faz destacar nesse diapasão como o legislador infraconstitucional estabeleceu os parâmetros legais do instituto da transação penal na forma do art. 76, da Lei 9.099/95 que assim dispõe: “Havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser especificada na proposta”.
Pode-se afirmar, portanto, que a mesma Constituição, que estabeleceu o princípio da necessidade de processo para a privação da liberdade, admitiu a exceção, configurada pela transação penal párea as infrações penais de menor potencial ofensivo: tudo no mesmo texto, promulgado em decorrência do poder constituinte originário.
Por outro lado, a aceitação da proposta de transação, pelo autuado (necessariamente assistido pelo defensor), longe de configurar afronta ao devido processo legal, representa técnica de defesa, a qual pode consubstanciar-se em diversas atividades defensivas: a) aguardar a acusação, para exercer oportunamente o direito de defesa, em contraditório, visando à absolvição ou, de qualquer modo, a situação mais favorável do que a atingível pela transação penal; ou b) aceitar a proposta de imediata aplicação da pena, para evitar o processo e o risco de uma condenação, tudo em benefício do próprio exercício da defesa.
A aceitação da sanção penal não importa em reconhecimento da culpabilidade penal, não derivando da aplicação da pena conseqüências desfavoráveis em relação à reincidência ou aos antecedentes criminais e a seus registros. O único efeito penal da transação é impedir novo benefício pelo prazo de cinco anos, o que denota-se razoável.
A segunda objeção, pela qual a transação penal seria inconstitucional, reide na eventual infringência ao princípio de presunção de inocência. Aqui a resposta surge instantânea, e nesse sentido corrobora Luiz Flávio Gomes quando preleciona:
“No sistema da Lei 9.099/95, a aceitação da imposição imediata da pena não corresponde a qualquer reconhecimento de culpabilidade penal (e aliás, nem mesmo de responsabilidade civil). Muito se tem escrito e discutido sobre essa dicotomia no direito penal (consenso ou conflito), e não é possível sustentar, em sã consciência, que a transação do direito brasileiro vulnera a presunção de inocência.” (GOMES, 2005, P.45)
O certo é que o estado de inocência não cede perante a transação penal, e quem aceita continua sendo inocente, tanto quanto o acusado submetido a processo.
Finalmente, a última argumentação pela inconstitucionalidade – a de que a transação penal feriria o princípio da isonomia, pois somente aquele que tivesse composto os danos poderia transacionar penalmente -, é profundamente equivocada, apesar da autoridade de seus defensores.
A leitura sistemática dos dispositivos seguintes mostra, à evidência, que a inexistência de composição civil não prejudica a transação penal. Veja-se o art. 75 da Lei 9.099: não obtida a composição dos danos, o ofendido, em caso de ação penal pública condicionada, terá oportunidade de representar. E, a teor do art. 76 da mesma Lei, sendo caso de representação (pela inexistência de acordo civil extintivo da punibilidade) ou de ação penal pública incondicionada, o Ministério Público poderá formular proposta de transação penal. É mais do que evidente que, se o Ministério Público pode propor transação penal, em caso de ação penal condicionada em que não houve composição dos danos, com maior acordo civil. Desta feita, onde a lei não distingue, ao intérprete não é lícito fazer distinções.
Por tais razões Julio Fabbrini (1997) é patente quando afirma que a aceitação da proposta de aplicação de pena não privativa de liberdade é, aliás, uma técnica de defesa. A pena é aplicada dentro dos parâmetros previstos em lei, ao autor de infração penal e em razão dela, pela autoridade competente após a aquiescência do agente e do advogado que o representa, tudo em obediência aos dispositivos legais. Assim, malgrado opiniões em contrário, os argumentos em favor da inconstitucionalidade e do não-reconhecimento da natureza de sanção à pena aplicada não convencem.
Diante de todo exposto, é de se concluir que decorre a inocorrência de qualquer inconstitucionalidade no tratamento do instituto da transação penal pela n° Lei 9.099/95 no âmbito dos Juizados Especiais Criminais.

CONCLUSÃO
Na relação entre sociedade e Estado, o Direito, por si só, é apenas um sistema de normas destinadas a proporcionar uma harmônica convivência social. Já o Direito Penal é a forma mais prática desse controle. Sob o prisma de assegurar o Estado Democrático de Direito, se faz mister mencionar a aplicação dos Direitos Humanos nessa esfera penal, garantindo nessa equação a efetividade dos direitos e garantias fundamentais constitucionais.   
A corriqueira necessidade de moldar a esfera jurídica diante das inquietações às quais a sociedade está sujeita reflete na (re)normatização do sistema judiciário brasileiro, o qual constantemente está sujeito à novas leis, tratados e normas jurídicas.
No entender da esfera penal, a aparente simplicidade suscitada pela Lei 9.099/95 significa uma verdadeira revolução no sistema processual-penal brasileiro. Visto que normalizou um sistema orientado pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, aplicando-se o instituto da transação penal nas causas de menor potencial ofensivo, garantido-se ainda os requisitos dos direitos humanos fundamentais, tais como: ampla defesa, contraditório, bem como o devido processo legal.
Diante do que explicita as controvérsias doutrinárias e os pareceres jurisprudenciais, a inovação dos Juizados Especiais promoveu a celeridade e diminuição do abarrotamento da máquina judicial. A inovação no sistema processual-penal brasileiro é hoje uma indiscutível realidade, não somente pelos resultados positivos de sua aplicação prática, mas principalmente pela sensível ampliação do âmbito de incidência de um dos seus principais institutos – transação penal –, através dos novos diplomas legislativos.
Aquém da evolução processual garantida pelas inovações da Lei 9.099/95, nota-se que o legislador atentou-se também por assegurar à sociedade o enfoque aos Direitos Humanos os quais devem sempre se fazer presente no nexo atinente entre a lei e a sua efetiva aplicabilidade para com os seus usuários, cidadãos brasileiros.
No que pesa tal emblemática, evoca-se a todo tempo a inter-relação entre o Direito Penal, material e processual, e as garantias pretendidas pelos Direitos Humanos. Essa necessidade de nexo entre os dois pólos é de suma importância para assegurar o Estado Democrático de Direito, instituído pela República Federativa do Brasil, à Luz da Carta Magna de 1988.  

BIBLIOGRAFIA
GRINOVER, Ada Pellegrini. Juizados Especiais Criminais. Comentários à Lei 9.099 de 26.09.1995. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2005.
FILHO, Nestor Sampaio Penteado. Direitos Humanos. Coleção OAB Nacional. 2 ed. São Paulo: Saraiva. 2011.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 13 ed. São Paulo: Saraiva. 2009.
CHIMENTI, Ricardo Cunha. Juizados Especiais da Fazenda Pública. 2 ed. São Paulo: Saraiva. 2010.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição [da] Republica Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal.
BRASIL. Lei n.° 9.099, de 26 de setembro de 1995. Dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências. Diário Oficial [da] Republica Federativa do Brasil. Brasília, DF, 26 set., 1995.
 Legalidade e transação Penal. Disponível em: https://www.professorsimao.com.br/artigos_convidados_gustavo_junqueira.htm. Acessado em: 05 de junho de 2011.
Direitos humanos, neoconstitucionalismo e instituto da transação penal. Disponível em:
https://jus.uol.com.br/revista/texto/10150/direitos-humanos-neoconstitucionalismo-e-instituto-da-transacao-penal. Acessado em: 05 de junho de 2011.
Considerações sobre a (in)constitucionalidade da transação penal. Disponível em: https://jus.uol.com.br/revista/texto/9341/consideracoes-sobre-a-in-constitucionalidade-da-transacao-penal. Acessado em: 05 de junho de 2011.

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